Dia da Água: Fundação Gaia divulga texto de Lutzenberger sobre o Delta do Jacuí

Fundação GaiaPara marcar o Dia da Água a Fundação Gaia partilha com seus amigos um texto escrito por seu fundador. Lutzenberger ressalta a importância da preservação das águas que margeiam a capital gaúcha, a partir de uma atenção especial para o Delta do Jacuí, contemplado pelo PLANDEL (Plano Diretor do Parque Estadual Delta do Jacuí) que fundamentou a criação da respectiva unidade de conservação tão ameaçada nos dias atuais.  

Ecovisão do Estuário – PLANDEL

Texto escrito por José Lutzenberger em abril de 1978

Entre os ecólogos de visão ampla, aqueles que levam o pensamento ecológico às suas consequências filosóficas e éticas, tornou-se comum o nome Gaia para designar a Ecosfera. Gaia é a deusa grega da Terra. Gaia, o ecossistema global, ou seja, a integração de todos os ecossistemas, é uma só, indivisível unidade funcional, um fabuloso sistema cibernético, belissimamente calibrado que, por isso, pode e deve ser concebido como um superorganismo, um organismo em nível de organização superior. Assim como num ser individual o organismo como um todo é muito mais que a soma de suas células, tecidos e órgãos, assim Gaia é muito mais que a soma de Biosfera, Litosfera, Atmosfera e Hidrosfera. Ela é um ser de vida própria, com história e evolução ímpar no Universo.

Quando os astronautas, desde a superfície da Lua, de uma distância de quase meio milhão de quilômetros, isolados em suas frágeis cápsulas e trajes espaciais, puderam observar Gaia como um todo, brilhante, mas pequena e só, na imensidão do espaço vazio, eles se viram tomados de sentimentos de humildade, admiração e veneração que só merecem a designação de religiosos. De fato, Gaia merece todo nosso respeito. Foi para suscitar estes sentimentos que o ecólogo britânico James E. Lovelock, proponente da “Hipótese de Gaia”, lhe deu este nome, nome significativo e deliberadamente feminino, pois Gaia, no sentido mais literal da palavra é a mãe de todas as formas de vida.

No contexto global de Gaia, os grandes estuários são órgãos de extrema preciosidade. Um ser humano pode perder membros e mesmo órgãos dos sentidos, mas não sobreviverá à perda de coração, fígado, rins ou sistema imunológico. Se destruirmos todos os estuários, Gaia perecerá. A vida só pode ter-se originado nos estuários primordiais e é através dos estuários que a vida conseguiu sair do mar e conquistar terra firme.

A Primeira Lei da Ecologia, conforme enunciada por Barry Commoner, nos diz que tudo está ligado com tudo. Mas ligações podem ser muito diferentes, diretas ou indiretas, simples ou complexas. Nas praias marinhas, oceanos e continentes se chocam. A delimitação é definida, direta e violenta. Nos estuários, o que temos é entrosamento complexo, transição suave, limites imprecisos alguns, abruptos outros. Os estuários são as comportas que ligam vida continental e oceânica. Nos estuários, o grande repositório dos oceanos está ligado com a circulação interior dos continentes. De certo modo poderíamos compara-los com as sinapses num sistema nervoso ou com os transistores num circuito eletrônico, mas sua função é muitíssimo mais complexa. A sinapse é uma conexão com a função selecionadora. Ela não é simples porta, nem filtro, ela controla o que deixa passar numa e noutra direção.

O funcionamento correto dos estuários tem a ver com os controles precisos da homeostase dos grandes e pequenos ciclos biogeoquímicos. Estes são o sistema de sustentação de vida de Gaia. Mais uma vez, uma comparação, mesmo grosseira e incompleta, facilita a compreensão. No organismo humano, o fluxo circular do sangue é relativamente fácil de compreender em termos apenas de hidrodinâmica, mas este fluxo carrega, em concentrações baixíssimas, tão baixas que no cômputo geral do fluxo nem aparecem os hormônios. Estes são substâncias controladoras que comandam com precisão o metabolismo do organismo como um todo. O próprio coração só funciona corretamente quando este metabolismo está bem regulado.

Na Biosfera o que é filtrado ou acrescentado nos estuários tem a ver com os comandos de precisão do sistema de sustentação de vida. A comparação acima procede apenas se nos limitamos à visão cibernética global, na visão detalhada e localizada as coisas são bem diferentes. Os ecossistemas, individualmente, ou Gaia como um todo, tem organização descentralizada, anárquica (no verdadeiro sentido da palavra, que significa sem governo, com disciplina individual, autogoverno, não caos generalizado). No organismo animal a especialização é extrema; temos um coração, fígado, baço, um par de rins e pulmões, etc., uma glândula ou par de glândulas para cada função hormonal, um cérebro, etc. No ecossistema cada função é executada de maneira difusa, amplamente distribuída e com extrema redundância. Algumas funções, a fotossíntese, p. ex., ou a respiração, são executadas por multidão de espécies diferentes, cada uma inserida no sistema com sua adaptação própria. As populações destas espécies podem estar quase que uniformemente distribuídas no ecossistema. Em outros casos pode haver concentração em reduzido número de espécies e a lugares relativamente limitados. Este é o caso da reciclagem de nutrientes de um corpo de água à terra fresca, uma função muito comum nos estuários e pântanos. Entretanto, mesmo nestes casos, as funções se repetem em muitas partes do globo, podendo as espécies ser outras em cada caso. Isto dá ao ecossistema como um todo uma capacidade de adaptação, de resistência a abusos e capacidade de recuperação impensáveis num organismo individual qualquer. Só por isso o Homem ainda não conseguiu matar Gaia.

Assim mesmo, estamos hoje causando irreparáveis estragos, pois já exterminamos milhares de espécies e estamos apagando ecossistemas inteiros. Bem adiantados estamos no caminho da demolição de todo um bioma, a Hiléia Amazônica. Os próprios oceanos já se encontram gravemente degradados pela exploração insensata e pela introdução de milhões de toneladas anuais de poluentes de alta toxicidade, haja visto a calamidade de Hermenegildo de abril de1978 que não passa de uma amostra. Alteramos também o balanço térmico do Planeta pela interferência cega nos equilíbrios atmosféricos. Enquanto ainda muito pouco sabemos do funcionamento grosseiro e quase nada dos controles precisos, estamos desmantelando em toda parte o sistema. Ninguém sabe até quando e onde podemos continuar desmantelando sem transpor o ponto de não retorno. Todo sistema homeostático complexo tem condições de suportar certa medida de abusos e descalibramentos, mas há sempre um limite, aquela última gota, além da qual a coisa desanda e o descontrole se torna sem condições de recuperação porque se perde a capacidade de auto-regulação.

O homem moderno parece que tem uma predileção toda especial pela destruição dos ecossistemas dos estuários. Em todas as partes do mundo eles são hoje ferozmente agredidos. Alguns dos ecossistemas típicos de estuários ocorrem também fora deles. Este é o caso dos banhados de água doce. Eles são atacados em toda a parte. Na maioria dos países, sob o pretexto de “saneamento” ou “recuperação” de terra, eles são sistematicamente exterminados, chegando a criar-se órgãos especiais, especialmente equipados para sua destruição. Em alguns países, como na China, já foram quase totalmente extintos. Os demais ecossistemas, estuários, restingas, lagunas rasas de água saloba ou doce, manguesais e outros, vêm sendo igualmente violados. Em meados de1977, não fosse a luta desesperada de reduzido grupo de conservacionistas, teriam sido dessalinizadas as lagoas de Imaruí, Santo Antônio e Mirim em Laguna, Sta. Catarina. Ainda paira grave ameaça sobre elas, pois o abastecimento de água para um novo pólo carboquímico significará, certamente, sério desequilíbrio hídrico. Poderá acontecer o contrário, a perda da água saloba em favor de uma salinidade normal, desastre igualmente sério para aquele vulnerável ecossistema.

Caso não houver, muito em breve, inversão desta tendência, pouco sobrará. Sem falar na infinidade de espécies que se apagarão para sempre, sendo que cada espécie representa uma função cibernética bem determinada, quase nada ainda sabemos dos efeitos globais, sobre como são afetados os ciclos bio-geo-químicos e os equilíbrios atmosféricos.

O que sabemos, é que Gaia é, pelo menos em nosso sistema solar, o único organismo vivo. Os demais planetas encontram-se em equilíbrio físico-químico, quer dizer, os diferentes elementos e compostos ali se encontram em estado físico e combinação química de entropia máxima. As coisas são exatamente como se pode prever pelas aplicações das leis da física e química. A terra é uma exceção. Se algum dia tivermos condições de examinar outros sistemas solares e nos encontrarmos à procura de vida extraterrena, devemos concentrar nossa atenção naqueles planetas que apresentarem situações físico-quimicamente imprevisíveis. Sem a vida, nossa atmosfera seria bem outra, como aliás ela foi antes da vida. Não somente nós temos a anomalia do oxigênio que, sem os processos vitais, estaria totalmente fixado nos minerais, mas temos outras anomalias dentro da atmosfera oxigenada, substâncias que, sem renovação constante, acabariam oxidadas e precipitadas. Nossa atmosfera contém, p. ex., fósforo e não precisamos de análises para constatar sua presença; certas tyllantsias (plantas da família das Bromeliaceas) que sabem viver somente do ar e da água da chuva, este é o caso da barba-de-pau que tanto embeleza nossas figueiras, nos estão a demonstrar exatamente isso. Nossa atmosfera contém também toda uma coleção de substâncias complexas. A situação é de antientropia.

Se a humanidade soubesse agir com um mínimo de sabedoria, ela estaria agora protegendo o que pode do que resta de natureza mais ou menos intata. O primeiro mandamento da sabedoria quando se mexe com uma máquina complexa, é não botar peças fora, especialmente quando ainda não se conhece todo o funcionamento desta máquina. Mas é exatamente isto o que a humanidade, presente em sua orgia de “desenvolvimento a qualquer preço”, está fazendo, com a agravante de que a própria definição vigente de “desenvolvimento” já vem sendo questionada por quase todas as pessoas realmente pensantes. Estamos realmente botando fora peças cuja função ainda desconhecemos, não distinguimos sequer entre peças comuns e peças que fazem parte de mecanismos de controle. Para usar outra metáfora grosseira, estamos mexendo na lataria do carro, mas com a mesma brutalidade mexemos também no platinado do distribuidor.

O cérebro humano, este mecanismo de inimaginável complexidade, é o sistema mais antientrópico a surgir neste rincão do Universo. Equipado com esta maravilha, o homem atual, que bem poderia ser o mais decisivo fator de freio de entropia, com condições de orientar o Caudal da vida a novas alturas e transcendências, está fazendo exatamente o contrário. O homem moderno, com este fantástico instrumento, passou a acelerar entropia, combate a rebelião antientrópica da vida. Que ironia!

O pouco que hoje sabemos sobre os estuários, seu funcionamento interno e seu entrosamento ecosférico é suficiente para sabermos que eles estão entre os mecanismos nevrálgicos do grande sistema.

Felizmente o Estuário do Jacuí encontra-se ainda em situação de relativa saúde biológica, com amplas possibilidades de recuperação, o que não quer dizer que não esteja já seriamente alterado, como veremos mais adiante. Sua relativa preservação se deve não à previsão racional, mas às dificuldades que, até muito recentemente, ele opunha aos que se propunham explorá-lo de uma ou de outra forma. Assim, nossa maior sorte é que ele tenha escapado as investidas das piores formas de exploração imobiliária. A incipiente conscientização ecológica em nosso meio, que levou à criação do Parque Delta do Jacuí, oferece-nos agora esta maravilhosa chance de preserva-lo e maneja-lo inteligentemente.

A imagem que comumente se tem do funcionamento dos ecossistemas é a de um fluxo aberto de energia impulsionando, através da fotossíntese, os fluxos materiais, estes últimos em ciclo fechado, de reciclagem perfeita. Só o ciclo da energia solar é aberto, isto porque a Segunda Lei não permite reciclagem da energia. Mas esta é uma simplificação. Na realidade os ciclos materiais nunca são completamente fechados. Somente os fluxos materiais globais de Gaia, quando considerados em perspectiva geológica de tempo, são fluxos quase perfeitamente fechados, sem acréscimos ou perdas.

Dizemos quase porque há os pequenos acréscimos dos meteoritos, do vento solar e da radiação cósmica e há certas perdas na atmosfera, especialmente o hidrogênio que consegue escapar à gravitação. Nos ecossistemas temos um fluxo complexo, relativamente aberto, com entradas e saídas mínimas. Este é o caso da floresta pluvial tropical. Ali a reciclagem é intensa e quase perfeita. A folha seca que cai do gigante centenário é logo desfeita no solo por grande variedade de organismos especializados. Poucos dias ou semanas depois ela já está perfeitamente mineralizada, os nutrientes voltam a subir às copas para nova produção de folhas. A luxuriância da Hiléia provém desta rápida reciclagem, mas esta é também a causa de sua extrema vulnerabilidade. A destruição e retirada da floresta deixa uma extrema penúria de nutrientes. Nos estuários a situação é bem diferente. Nestes a grande produtividade biológica depende do abundante e constante aporte de nutrientes pelo sistema hídrico. Tanto em seus corpos de águas abertas como nos banhados, a produção primária é elevada porque é grande a disponibilidade de nutrientes. Por essa mesma razão é também menor a vulnerabilidade destes sistemas se considerarmos apenas sua capacidade de recuperação, mas eles são muito vulneráveis aos trabalhos brutais da engenharia moderna com suas drenagens, aterros, polders, poluição, retificações.

Os estuários são, por assim dizer, filtros ou armadilhas de nutrientes. Parte importante dos nutrientes que os rios trazem do interior é retirada ou redirigida, não mais flui diretamente aos oceanos. Os equilíbrios da vida nos oceanos e também nos continentes dependem deste mecanismo.

Por um lado, grande proporção de nutrientes é fixada e retirada da circulação na Biosfera pela sedimentação mineral, sempre intensa nos estuários. Outra parte é fixada em sedimentações orgânicas. A parte que fica na Biosfera é redistribuída.

Em certos tipos de banhado se formam camadas de turfa. Isto é assim porque a ausência de oxigeno no fundo impede a decomposição aeróbia com mineralização completa e reaproveitamento pela vida vegetal. A turfa é material orgânico parcialmente decomposto e estabilizado, fora do alcance do ecossistema. No contexto da evolução geológica ele estará sujeito a ulteriores transformações. Os combustíveis fósseis, que tão orgiasticamente hoje queimamos, surgiram todos em processos desta natureza. Conforme o tipo de evolução geológica, a turfa poderá também voltar a ser descoberta, sendo decomposta e reaproveitada pela biocenose. Durante os processos bioquímicos desta estabilização e deposição, parte da matéria orgânica é entregue à atmosfera. Até 60% do material pode ser transformado em metano, um gás que faz parte dos equilíbrios mais preciosos da atmosfera. Também surgem outros gases, o gás sulfídrico e até compostos de fósforo. Por esse lado os estuários e banhados estão diretamente acoplados aos calibramentos da atmosfera. Pela fotossíntese e processos de decomposição aeróbia eles já estão diretamente inseridos nos grandes ciclos bio-geo-químicos, no ciclo de O2/CO2 e no complexo ciclo do azoto.

A vida nos estuários pode ser muito complexa e variada, como no caso do Estuário do Jacuí, que é estuário de água doce, ou pode ser relativamente pobre em espécies. Este é o caso de certas formas de ecossistemas costeiros de águas mais ou menos salgadas. Mas, em toda a gama de variações do espectro de estuários existentes na Terra, a vida é sempre muito intensa e os acoplamentos dos ecossistemas estuarinos com os demais ecossistemas são muito complexos.

Estes acoplamentos significam transporte e redistribuição de nutrientes, em alguns casos a distâncias enormes. O salmão consumido pelo urso no riacho de montanha, quando sobe cascatas em época de desova, significa retorno à cabeceira de nutrientes que o rio já quase tinha entregue ao mar. O mesmo acontece quando o jacaré consome o bagre que em piracema vai aos banhados interiores. A garça que consome o peixe e o sapo do banhado, quando defeca ou morre em terra seca, está igualmente fazendo redistribuição de nutrientes em direção oposta a do fluxo entrópico dos rios. Lembremos também certos insetos, os mosquitos, libélulas, mariposas e outros que, desenvolvendo-se na água às custas dos nutrientes do ecossistema aquático, são consumidos em massa no ar por morcegos ou andorinhas e outros pássaros. A migração dos pássaros complica ainda mais a situação. Um relato apenas aproximado de todas estas interconexões do funcionamento dos estuários com os demais ecossistemas, tanto terrestres como marinhos, por si só encheria compêndios. A complexa rede de arcos de retroação positiva ou negativa, de controles de fluxo, de freios de entropia, merece profundo e demorado estudo cibernético.

Somente quem consegue vislumbrar alguns dos aspectos mais aparentes e emocionantes de toda esta maravilha em seu entrosamento com a grande maravilha que é Gaia tem condições de sentir o drama da incrível cegueira e criminosa estupidez do tratamento que, em todo o mundo, esta patológica sociedade industrial em que vivemos dispensa aos estuários.

No caso do Delta do Jacuí, são extensas e profundas as alterações introduzidas pelo homem, sua função cibernética dentro do grande contexto já está seriamente afetada. Ninguém mais pode saber como era este estuário antes da chegada do homem branco, mas podemos ainda extrapolar a partir de alguns restos de natureza intacta em outras partes da região.

Em primeiro lugar, antes da colonização, toda a bacia de captação estava intacta, com suas florestas e demais ecossistemas, campanha, pampa, alto da serra, banhados intocados. Isto significava um equilíbrio hídrico bem diferente do atual. Aliás, o que testemunhamos hoje é um avançado estado de desequilíbrio hídrico. Um sistema fluvial em paisagem intacta, tende sempre a um perfeito equilíbrio hídrico, isto é, a diferença entre os níveis de estiagem e de cheia, ao longo da evolução geológica e biológica da bacia, tende a zero. É claro que nunca chega a tanto porque pode haver grandes flutuações na pluviosidade conforme a região climática. As flutuações são mais pronunciadas em regiões de savana, cerrado e, mais ainda, na caatinga e no deserto. Nas grandes bacias, como na amazônica temos, inclusive, zonas de clima fundamentalmente diferente abarcados pelo mesmo sistema hídrico. Nestes casos temos flutuações periódicas e a tendência evolutiva é no sentido de uma maior regularidade na flutuação, basta lembrar o  Nilo antes da barragem de Assuan. No Rio Grande do Sul, fazendo abstração de certas irregularidades climáticas, como esta seca dos primeiros meses de 1978, temos uma pluviosidade relativamente uniforme, que era ainda mais uniforme quando nossas florestas estavam intactas. Os desníveis na bacia do Jacuí devem ter sido muito pequenos antes da colonização. De fato, verificam-se hoje, nas margens dos rios deste sistema, inclusive em certas praias do Guaíba e nas orlas do estuário formas de erosão que são conseqüência exatamente destes desníveis brutais.

Se tivermos hoje uma precipitação como aquela que causou a grande enchente de 1941, os efeitos serão muito mais catastróficos. Em 1941 a bacia de captação estava muito mais intacta, a retenção pela floresta e solos não erodidos era ainda considerável. Hoje, além da devastação florestal, temos imensas áreas de lavoura, com terra quase sempre nua, sem matéria orgânica e sem proteção contra a erosão, as queimadas são mais intensas e freqüentes, por isso e pela exploração irracional a recuperação de mata secundária é menor, em grandes extensões ela se tornou impossível. Já se podem ver até gigantescos deslizes em plena floresta de encosta, aparentemente intacta, mas com sua vegetação rasteira e subbosque destruídos pelo fogo. Em toda a parte se combatem os banhados que são drenados ou aterrados. Os banhados interiores são grande fator de estabilização do sistema hídrico, eles armazenam água na cheia e devolvem na estiagem. Convém mencionar que são ainda poucos os que compreenderam e levam em consideração o valor estabilizador no equilíbrio hídrico dos banhados das ilhas do Delta. Sem estes banhados as cheias seriam muito mais violentas. Especial atenção merece a bacia do Gravataí, diferente das demais. O rio Gravataí inverte periodicamente a direção de seu fluxo. Com Guaíba baixo ele drena o grande banhado da planície entre Viamão e Gravataí, com Guaíba alto ele leva água para lá amenizando a cheia no Guaíba. Nunca deveríamos destruir este grande banhadal. Pela mesma razão todos os grandes banhadais que circundam o Delta propriamente dito e que ainda não estão incluídos no Parque Delta do Jacuí deveriam ser preservados. É, realmente, um país da extensão do nosso, não tem porque não preservar seus banhados.

Se a destruição da capacidade de retenção na grande bacia de captação do sistema Guaíba-Lagoa dos Patos não for freada e, infelizmente não se vislumbra sequer um freio nesta tendência, muito menos inversão, o desequilíbrio hídrico aumentará implacavelmente. Grandes obras de proteção contra cheias, mesmo dando proteção localizada, só agravam o problema geral na bacia. Seus custos melhor estariam empregados em amplo programa de proteção e recuperação da bacia, especialmente em suas cabeceiras.

Os complexos florísticos que hoje cobrem as ilhas do Delta e os banhadais contíguos estão ainda em condições de sobreviver o desequilíbrio hídrico causado pelo homem, em parte eles constituem adaptação exatamente a esse desequilíbrio. Antes do desequilíbrio e da devastação florestal devem ter predominado nas ilhas formações florestais do tipo que ainda sobrevive com vestígio em certos lugares da planície costeira do RGS e no Sul de Santa Catarina. Trata-se de florestas inundadas, de lagoas colmatadas. Este tipo de floresta, muito rica em espécies arbóreas, herbáceas e também epífitas, possivelmente já não teria condições de reestabelecer-se nas ilhas porque não sobreviveria as grandes enchentes. Hoje na Amazônia é muito comum observar-se mortandade generalizada em certas comunidades florísticas do tipo igarapó, apesar de tratar-se de comunidade adaptada a solo inundado. Elas não têm condições de sobreviver às inundações atuais que, pelo desflorestamento mais a montante na bacia, atingem hoje alturas antes inconcebíveis.

As comunidades atuais, os complexos de alagados em que predominam ciperáceas ou gramíneas, typha ou thalia, sarandí e outros ou as áreas completamente cobertas de aguapé (Eichhornia) ou salvínia e azzola são muito flexíveis. Eles conseguem estabelecer-se rapidamente e podem facilmente ser substituídos ou recuperar-se. Eles nunca constituem clímax. Sua importância reside justamente nesta flexibilidade, pois eles rapidamente colonizam qualquer baixio que se forma pela sedimentação, eles promovem inclusive esta sedimentação. Surgem assim, de imediato, novos refúgios de fauna tanto dentro como fora da água.

O efeito filtrante dos estuários para os nutrientes que sem eles seriam levados diretamente ao mar já foi mencionado. Esta filtragem é mecânica e biológica. Hoje, porém, os rios neste estuário, pela erosão generalizada em toda bacia de captação, incrementada ainda pelas imensas e absurdas chagas de terraplanagem que se alastram por todo o Estado, trazem tremenda carga de sólidos e nutrientes solúveis. Antes do início de todas estas devastações, até o início do século passado, o Guaíba deve ter tido águas cristalinas (o índio sempre pescou com arco e flecha), talvez de cor levemente amarelada pelo ácido húmico. Agora sua água é sempre barrenta, chegando a ser vermelha e com transparência quase zero durante as cheias. A grande maioria considera normal este estado de coisas, pois a quase totalidade dos rios de nosso devastado país já está assim. A elevada concentração de nutrientes solúveis provém da agricultura de rapina, das queimadas e da adubação química. A situação é complicada pela carga orgânica de certas indústrias, dos esgotos urbanos e detergentes. Outra complicação mais recente mas crescente e ameaçadora é a dos biocidas que hoje o homem introduz despreocupadamente no ambiente, entre eles os pesticidas, todos eles venenos fulminantes ou persistentes quando não ambas as coisas ao mesmo tempo. Além dos venenos usados na agricultura, a indústria usa e abusa de sempre mais venenos que proposital ou acidentalmente acabam nos cursos d’água. Ainda mais recentemente esta sociedade de esbanjamento inventou os aterros chamados de “sanitários”, imensos lixões que ela tem predileção por estabelecer logo nos banhados. Uma destas montruosidades foi estabelecida na Ilha do Pavão com a massa orosa do lixo diretamente lavada pelas águas do rio. Ainda agora, mais de uma ano após seu abandono, a filtração é tal que toda a vegetação de banhado está morrendo em sua volta. Está claro que, há muito tempo e cada dia mais, o estuário não consegue arcar com tanta poluição e descontrole.

Quais serão as conseqüências globais e a longo prazo?

O fundo da Lagoa dos Patos, esta imensa e fascinante restinga que interiorizou o Delta do Jacuí, quando as águas do oceano subiram após a retirada do gelo no hemisfério norte, ao terminar a última glaciação, este fundo era de areia, hoje ele é lodoso. Mesmo em época de água relativamente clara, os grandes barcos, com o revolvimento de suas hélices, deixam detrás de si uma faixa de água vermelha, vermelha como a argila do alto da serra. Por isso o mar em nossa costa também já não é o mesmo. A faixa costeira está quase sempre eutrórica. São raros os dias do ano em que ele ainda se nos apresenta com ondas transparentes, por ocasião das cheias o próprio mar chega a ter o aspecto barrento do Guaíba. O regime de sedimentação nas áreas costeiras da plataforma continental está fundamentalmente alterado. Só este fato já significa sensível deslocamento nos equilíbrios dos ecossistemas marinhos. Entre os ecossistemas marinhos, os costeiros são justamente os mais produtivos. Agora temos ainda a irracional pesca industrial com rede de arrastão a liquidar o que sobrava. Por quanto tempo poderá continuar alimentando-se uma população em franca explosão demográfica se os recursos dos quais ela vive declinam, por sua própria ação, em ritmo ainda mais acelerado que seu crescimento? Hermenegildo é apenas augúrio do que está por vir, mas não esmorecemos agora na construção do Pólo Petroquímico…

Quem não está familiarizado com a mais recente literatura ecológica, quem na Ecologia apenas vê a soma dos conhecimentos que nos permitiriam “explorar” mais racionalmente nossos “recursos”, evitando calamidades como as que já se multiplicam em toda a parte, achará, certamente, que este relato é demasiado sentimental, uma pregação, mais que uma explanação técnica. Mas isto é deliberado.

Este trabalho dirige-se não à técnicos e cientistas, mas aos homens de decisão. Estes homens estão hoje acostumados a basear suas decisões em dados apenas técnicos que lhes são apresentados por especialistas de visão estreita. Assim, ao perseguirem alvos estreitos, de acordo com as conveniências políticas do momento, desencadeiam imensos estragos que afetarão sobretudo as gerações futuras. Daqui para diante, se quisermos bem a nossos filhos, o processo decisório terá que partir de visão ampla e terá que levar em conta uma nova ética englobante. Esta nova ética é a filosofia ecológica, da qual esperamos ter conseguido dar aqui uma modesta amostra.

Fotos: Cláudia Dreier e Arquivo Fundação Gaia. Edição de fotos e textos: Cláudia Dreier comunicacao@fgaia.org.br

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