Artigo de Arno Kayser: Bastidores da luta pela criação do parcão

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por Arno Kayser*

A luta pela conquista do Parque Henrique Luiz Roessler é um marco na vida de Novo Hamburgo. Na opinião de muitos ecologistas um fato tão marcante como a chegada dos alemães em 1824, a vinda do trem na vida do século XX ou a criação da Fenac, nos anos 1960.

Foi uma das maiores mobilizações populares vista na cidade e a marca o início de uma era de mais valorização dos espaços públicos de lazer, da preservação ambiental e da valorização de nossa história.

Departamento do Meio Ambiente recomenda a criaçao do Parque de Hamburgo Velho. Jornal NH, 16/09/1986. Reproduçao do autor. Apesar do parecer favoravel, a criaçao do ‘parcao’ de 53 hectares entre os bairros Hamburgo Velho e Jardim Mauá ainda não podia ser definida por negociaçoes entre a Prefeitura e a Calçados Paquetá, proprietária da área, dizia notícia do dia posterior, 17/06/1986.

Isto porque a sua materialização de certo modo começa na chegada dos migrantes alemães. Em 1825 Hans Peter Schmitt recebeu do Império Brasileiro o lote colonial que hoje é o parque. Ele é o principal líder político destes tempos iniciais da cidade. Tanto que sua casa é reconhecida como patrimônio histórico nacional e integra a área do parque.

Durante as décadas seguintes a área teve uso agrícola similar a tantos outros lotes coloniais. Mas aos poucos, por sua localização estratégica começou a ter usos públicos. Várias trilhas a cortava servido de atalho entre Hamburgo Velho e Canudos. O espaço também era usado por caçadores de perdizes. As escolas da IENH usavam o lugar para piqueniques. Em especial na época da pascoa. Razão porque muitas pessoas conheciam o local como “mato do coelho”. Populares usavam o local para coleta de marcela na sexta feira santa e muitos buscavam no lugar pastos para animais domésticos ou usava o terreno como lugar de corridas e caminhadas. Processo que foi formando uma base de apoio sentimental a ideias de proteção ao local em muitos hamburgueses.

Nos anos 1970, num movimento liderando por Ângela Sperb e Frederico Scheffel, há um grande impulso pela preservação do patrimônio histórico de Hamburgo Velho que gravita no entorno do lote de Hans Peter. Na esteira deste processo começa a se consolidar a ideia de transformar o local numa grande área verde vinculada ao núcleo histórico por ser um dos últimos ainda preservados no uso e na forma com o modus operantes da primeira fase da colonização germânica.

O autor do artigo (de cabelo comprido) com grupo interpretando cançoes em ato público (acervo do autor)

Para fomentar esta ideia Ângela e Frederico mobilizam técnicos da Metroplan (que era quem opinava sobre liberação de grandes loteamentos) e do Iphan para conhecer o local e seu potencial. Para guiar a visita também é convidada a presidente do Movimento Roessler, Jane Schmitt. Em fevereiro de 1983 é realizada uma caminhada no local que termina debaixo de um tremendo temporal de verão. Nesta vivência se arraiga no peito de Jane a determinação de fazer do local um grande espaço de proteção ambiental, preservação histórica, educação ambiental, lazer e pesquisa cientifica.

Caminhada em prol do Parque, em 1988

Para imantar a ideia Jane começa a reunir pessoas. Umas das primeiras à responder é a, então estudante de arquitetura, Jussara Klein. Ela em seu trabalho de conclusão de curso projeta um grande parque na área do campo dos Schmitt, como o local também era conhecido.

Esta proposta foi apresentada no segundo semestre de 84 a um pequeno grupo de ativistas da defesa do meio ambiente. Alguns colegas da Jussara que na época compunha um grupo de debates de urbanismo mobilizados pelo Jornal NH para o projeto chamado “Novo Hamburgo como Meta”. A eles se juntou o vereador Cláudio Spindler, o Agrônomo Arno Kayser e o economista Luiz Jacintho. Luiz era amigo de Frederico e o mais antigo vegetariano da cidade. Também era um consultor renovado de várias empresas e com muito acesso a lideranças da cidade.

A ideia do parque encantou este pessoal que, assumido a alcunha de “grupo do parque”, começou a discutir formas de levá-la adiante. A primeira ideia foi mobilizar lideranças da comunidade para formar um grupo de apoio e levar a proposta para o prefeito Foscarini. O Vereador Cláudio Spindler se prontificou a conseguir esta agenda, mas havia o temor que ela fosse mal recebida, pois o prefeito era um grande amigo do asfalto e se temia que não fosse sensível uma proposta tão “verde”.

Foi organizada uma reunião no centro de cultura para a qual foram convidadas diversas lideranças da cidade para conhecer a proposta. A reunião começou com a apresentação do trabalho da Jussara. Presente a reunião o secretário de educação Ernest Sarlet tentou demover o grupo alegando que o Município não tinha recursos pra uma compra de tal monta. Sua manifestação foi muito incisiva e desmobilizadora. Fato que terminou por irritar o senhor Luiz Jacintho.

Naquela noite seu Luiz escreveu um imenso texto de próprio punho num papel enrolado em forma de pergaminho colocando diversos argumentos para fundamentar a ideia e rebater o discurso contrário do secretário.

Este texto foi lido no início de 1986 em reunião no gabinete do prefeito quando o projeto foi levado pelo “Grupo do Parque”. Por conta do fato de seu Luiz ser uma pessoa de muito prestigio o prefeito ouviu o discurso atentamente. Coisa que talvez não fizesse se fosse um dos moleques do grupo que o apresentava. Se ele foi ou não convincente não podemos dizer com certeza, mas o fato é o prefeito Foscarini, de forma muito surpreendente para nós, apoiou de pronto a ideia do Parque.  

Isto motivou o “Grupo do Parque” a levar a proposta adiante. O próximo passo foi levar o assunto para o Jornal NH a fim de informar toda a comunidade. A ideia logo foi acolhida pela redação do jornal que começou a pautar o tema de forma positiva.

Buscando o apoio da direção do Jornal NH o tema foi pauta dos trabalhos do Grupo “Novo Hamburgo como Meta”. O grupo se propunha a projetar a cidade para o futuro e a ideia de um grande “central park” parecia oportuna.

A direção foi simpática à ideia. Especialmente o diretor Paulo Gusmão. Esta sensibilidade talvez se deva a uma coincidência feliz na vida dos irmãos Gusmão, fundadores do Jornal NH. Eles na infância foram vizinhos de Henrique Roessler. Um deles, Luiz Fernando, foi funcionário do Roessler na infância. O que, talvez, explique essa posição pro-ambiental.

Com a boa acolhida do Prefeito e do Jornal o próximo passo foi organizar um evento público de apresentação do parque a cidade. A família da Jane tinha uma grande gráfica e lá se conseguiu produzir um belíssimo cartaz chamado à população para um evento no local. A chamada foi “Queremos Espaço Verde”. O evento mobilizou mais de 300 pessoas e teve como momento culminante o plantio de um Ipê Amarelo ao som da canção escoteira “árvore da montanha” por crianças presentes no evento. Curiosamente um dos líderes do evento foi o Secretário Sarlet.

O sucesso da mobilização e sua repercussão deram o impulso que faltava para o primeiro ato oficial pro-parque. Em outubro de 1986 foi realizada uma segunda caminhada no parque que serviu para o prefeito Foscarini assinar o decreto de utilidade pública 108/1986 que declarava o local destinado pra a criação de um parque.

Este momento marca o fim da primeira fase da campanha de criação do parque que a até então vinha sendo mais travada em reuniões de gabinete e veiculação pela mídia e participação em eventos no local.

O Grupo Paquetá, proprietário da área reagiu de forma negativa ao decreto tentando reverter à ideia de várias formas. Umas das estratégias foi oferecer a doação da casa Schmitt ao município como compensação pela aprovação do loteamento numa tentativa de dividir ecologistas e defensores do patrimônio histórico. Sua ideia inicial era derrubar a casa e abrir uma rua no local. Fato que só não aconteceu por intervenção direta de Frederico Scheffel que chegou a se postar diante das máquinas que iriam por a casa abaixo.

A reação do Grupo Paquetá fez o prefeito Foscarini recuar por conta da pressão econômica de empresários da cidade contrários a ideia do parque e o medo de fazer um grande investimento. Havia muita pressão da Associação Comercial e Industrial (ACI) contrária ao Parque na época. Eles defendiam a criação da Guarda Municipal e queria todo dinheiro para isto. O Presidente da ACI Raul Heller e Henrique Heldt, usando de sua influência junto a prefeitura (especialmente junto ao meu então meu Chefe Sarlet) chegaram a conseguir uma reunião secreta com Arno Kayser e Jussara Kley para pressionar pela desistência da campanha pró parque. A recusa dos ecologistas gerou a primeira reação forte da comunidade a ideia do parque.

Estes fatos afetaram o apoio do Jornal NH à campanha. Especialmente por parte da direção. Obviamente eles tinham fortes laços comerciais, ideológicos e mesmo de amizade como os donos do Grupo Paquetá. Por isto, no início, optaram por um apoio discreto a causa. A frente de apoio era mais dos jornalistas, muitos deles simpatizantes do Movimento Roessler, que reorganizado em agosto de 1986, assumira a liderança da campanha pelo parque.

Outro fato de peso na mudança da posição da direção do NH teve a ver com a alteração na posição da prefeitura. A relação do Gruposinos com o poder público tinha que ser mantida em sintonia para não sofrer repercussões econômicas negativas. Isto trouxe um recuo da cúpula do jornal.

A direção do jornal também apoiava a criação da Guarda. Por isto a talvez tenha ficando sempre numa postura de apoio discreto à criação do parque, para não confrontar os empresários da direção da ACI.

Este quadro só mudou quando o Grupo Paquetá foi convencido a vender a área pelo valor do possível lucro do Loteamento. Sem essa pressão econômica contrária o Jornal NH voltou a abrir mais espaço para a causa do Parque.

Quando o Movimento Roessler percebeu a mudança de posição de Foscarini iniciou uma segunda fase da campanha pró parque. Ela começa com o lançamento do adesivo “Parcão Já”. Uma criação do artista Rogério Rauber inspirada no lema das “Diretas Já”. Além disto, com o apoio da Upan, promoveu a ocupação simbólica do local com colocação de várias placas informando que ali seria o futuro parcão. Essa ocupação foi em março de 1987.  A seguir o Movimento Roessler começa a realizar atos em prol do parque culminando com um grande show no local em outubro de 1988 com a presença do Coral Luisinho, da Banda Barata Oriental, do Vocal Salamaleque e dos músicos Mauro Kern e Nando d’Ávila. Show que contou com o apoio de outras entidades da cidade que já vinham dando apoio à idéia do parque como Igreja Católica, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB), o Rotary Club, o Grupo de Escoteiros Hans Staden, o Sindicato dos Sapateiros e o Sindicato dos Metalúrgicos de Novo Hamburgo. Um pouco antes foi feito o lançamento do livro “Peixim e o rio dos sinos”, de Rogério Rauber junto com uma festival de pandorgas. Na mesma época estudantes de três escolas do centro da cidade (Fundação Liberato, Pio XII e 25 de Julho) realizaram uma grande passeata em favor da criação do parcão e da proteção ao meio ambiente.

Estes atos populares fizeram com que o tema da criação do parque fosse um dos grandes motes da campanha eleitoral para prefeito daquele ano. O Movimento Roessler realizou um encontro com os candidatos para apresentar o “Programa Verde para uma Política Ambiental para Novo Hamburgo”. Neste documento havia o compromisso pela implantação do parque que foi assinado por diversos candidatos.

Em reação a tudo isto o Grupo Paquetá tentou uma nova proposta de loteamento em que oferecia 21 hectares da área para criar um parque em troca da liberação do loteamento nos outros 30 hectares. O prefeito Foscarini se mostrou favorável à ideia, mas deixou o negócio para seu sucessor resolver. Os ecologistas alegaram que a proposta oferecia a porção de nascentes do Parque que de qualquer forma a Metroplan não deixaria lotear e onde não seria possível se implantar estruturas de lazer por ser de proteção permanente. Além disto, um loteamento acima das nascentes comprometeria as águas do parque.

Com a eleição de Paulo Ritzel inicia a etapa final da luta pelo parque. Embora se declarando ecologista e fundador do Movimento Roessler (Paulo esteve no ato de fundação formal da entidade alguns meses antes) a sua posição não era muito favorável pelo alto investimento a ser feito. Mas isto tudo mudou quando o Grupo Paquetá foi convencido de desistir do projeto e sinalizou que venderia a área se o município pagasse o “lucro” do loteamento. Este valor foi calculado considerando a diferença entre o faturamento da venda de cerca de 300 lotes possíveis de se implantar fora da área de preservação permanente de 21 hectares que tentara entregar na sua última tentativa de lotear o terreno menos os custos da implantação do loteamento. Este “lucro” foi estimado em um milhão de dólares pelo perito Luís Alberto Modesti que fez a avaliação de graça. Esta etapa foi negociada pelo Advogado Newton Alano (do Sítio Pé na Terra) que tinha contato com o pessoal da Paquetá e era também apoiador do Roessler.

O valor serviu de base para Jair Foscarini — secretário de Planejamento — calcular que em 4 anos se poderia arrecadar este valor com um acréscimo na alíquota do IPTU. Convencido desta possibilidade Paulo Ritzel garantiu que compraria o parque se algum vereador da oposição apresentasse este projeto de aumento do IPTU. Quem topou apresentar o projeto foi o vereador Cláudio Spindler.

Quando tudo parecia certo os empresários dirigentes da ACI voltaram à carga para pressionar a Câmara a não aprovar o projeto do Cláudio e destinar esta grana a criação da Guarda Municipal. Chegaram a mandar telegramas no dia da sessão de votação pedindo voto contrário. A diretora da Câmara, favorável ao parque, não entregou os mesmos a tempo. O que ajudou na aprovação unânime do projeto.

No dia da votação foi chamada outra grande mobilização popular. Crianças e adultos montaram um corredor polonês para pressionar todos os vereadores entregando flores silvestres colhidas no parque para sensibiliza-los.

Com a aprovação do recurso Ritzel acabou comprando o parque em fevereiro de 1990 quando o aumento do imposto começou a vigorar.

Foi à culminância de uma longa negociação e um das maiores mobilizações populares e de cidadania que a cidade assistiu. Foi uma grande engenharia política de cidadania que felizmente deu certo.

O momento histórico de redemocratização do país ajudou neste sentido, pois a luta correu paralela à campanha das diretas já a e primeira eleição presidencial deste os anos 60. Havia um anseio muito grade de mudar as coisas para melhor no país que ajudou neste processo. Também foi a época da luta pela criação do Comitesinos refletindo um anseio mundial pela proteção da natureza que vinha deste os anos 60 no mundo todo.

Ato recente do Movimento Roessler, em 2024

A partir daí começou um longo trabalho de consolidação da conquista que segue até nossos dias. E até hoje todo este grande esforço de cidadania tem conseguido manter o espírito da mobilização inicial gravado no DNA do parque Henrique Luiz Roessler.

  • O autor Arno Kayser é Agrônomo, Ecologista e Escritor

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Editor

Jornalista, Porto Alegre, RS Brasil.

One thought on “Artigo de Arno Kayser: Bastidores da luta pela criação do parcão

  1. Muito bom e necessário, Arno. As histórias sobre a movimentação por ambiente e natureza íntegros estão fazendo falta, pois nos inspiram e incentivam. Queremos mais!

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