O jornal Sul21 publica a seguinte entrevista com o Professor Paulo Brack, do INGA:
Brack: “Quando se define como prioridade as obras da Copa e abrir grandes vias, praticamente se joga para escanteio a nossa legislação ambiental”. Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Iuri Müller
A recente fraude apontada pela Polícia Federal na emissão de licenças ambientais no governo do Rio Grande do Sul e na prefeitura de Porto Alegre, mais do que gerar modificações nas secretarias de meio ambiente, reforçou as críticas de entidades ambientalistas sobre o modelo de desenvolvimento vigente. Descoberto pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, o caso mostrou o impacto da pressão do empresariado e dos interesses políticos sobre os órgãos reguladores, e como as secretarias da área tornaram-se muitas vezes moeda de troca entre os partidos.
Em entrevista para o Sul21, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Paulo Brack, conversou sobre a situação do meio ambiente nas esferas municipal e estadual, e buscou contextualizar o quanto o escândalo da emissão irregular de licenças exemplifica sobre a postura de governantes e empresários. Paulo Brack é biólogo, doutor em Ecologia e Recursos Naturais, membro do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá) e da Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente (Apedema).
“Esperamos que a Secretaria de Meio Ambiente passe por uma profunda mudança, porque para nós é uma secretaria estratégica”. Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – A possível fraude recente na emissão das licenças ambientais revela muito sobre a postura de parte do empresariado e das secretarias no Rio Grande do Sul?
Paulo Brack – A pressão política e a pressão econômica são muito grandes nos órgãos, não só no Rio Grande do Sul, mas no Brasil e fora do país também. De certa maneira, passa por nomeações de cargos de confianças para áreas que deveriam ter, no mínimo, uma boa qualificação técnica. Isso acontece tanto no estado como no município, infelizmente, e talvez agora o governo do estado consiga colocar “ordem na casa”. Esperamos que esses cargos sejam ocupados por pessoas com um mínimo de conhecimento técnico. Claro que a questão política é inerente ao sistema, o governo tem toda a legitimidade para chamar pessoas com esse caráter político, mas o perfil técnico é necessário.
Vários membros que foram nomeados pela administração atual, que esteve envolvida com a situação em nível de estado, não têm nenhuma trajetória na área e nós chegamos a alertar o governo em relação a isso. Esperamos que a Secretaria de Meio Ambiente (SEMA) passe por uma profunda mudança, porque para nós é uma secretaria estratégica. E é claro que nessa operação o setor empresarial ficou um pouco esquecido. Há vários exemplos, como o setor imobiliário em Porto Alegre e no Litoral Norte, que tem responsabilidade grande nisso. Também há forte pressão das empresas de extração de areia, da monocultura da soja, do setor da silvicultura, sobre o qual principalmente no governo Yeda Crusius (2007-2011) houve um embate muito grande, e do setor de construção civil, de loteamentos no litoral, sobre o qual já havia denúncias.
Esta regionalização recente da Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental) foi perversa nesse sentido, porque houve uma série de irregularidades com mega-empreendimentos, com a construção de barragens. A transgressão no licenciamento acabou se tornando uma regra. Isso é uma questão muito perigosa porque se naturalizou uma situação de transgressão. De modo que esses setores, incluindo o setor do carvão, fazem uma pressão muito grande para que se flexibilizem a emissão das licenças, e que têm uma matriz econômica que é muito ultrapassada do ponto de vista da sustentabilidade e do meio ambiente.
“Nessa operação o setor empresarial ficou um pouco esquecido. Há vários exemplos, como o setor imobiliário em Porto Alegre e no Litoral Norte, que tem responsabilidade grande nisso”. Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Sabe-se que há corrupção no meio político, mas por vezes não é o empresariado que dá início a engrenagens como a que foi desmontada recentemente?
Paulo Brack – Eu diria que a questão política também está passando por uma crise muito grande, os cargos nas secretarias de meio ambiente acabaram se tornando moeda de troca entre governos e partidos, tanto no município como no estado. Há um processo de degeneração da política relacionado a isso, e o quadro atual é um dos piores.
O primeiro governo, o de Olívio Dutra (1999-2002), teve êxitos, criou a Secretaria, manteve o mesmo secretário por quatro anos. Depois, houve um esfacelamento da SEMA, que já não era muito forte, mas se fragilizou ainda mais. E eu poderia dizer que é uma “crônica do desmanche” que foi acontecendo paulatinamente. No governo de Germano Rigotto (2003-2007), houve pelo menos três ex-deputados que não foram eleitos e assumiram a Secretaria como prêmio de consolação. E há o tráfico de influência, com a questão dos financiamentos privados de campanha.
No governo Yeda também houve o rodízio de secretários, um deles foi o próprio Berfran Rosado, do Instituto Biosenso, e foi também nessa época que mudaram as regras do Conselho Estadual do Meio Ambiente, com o ingresso de setores privados. Nós, ambientalistas, perdemos espaço lá dentro. Com o governo Tarso Genro tínhamos outra expectativa, mas me parece que ter passado a pauta para um partido político que não tinha experiência na área (o PCdoB) foi algo bastante ruim.
“Nós temos o problema da fragilização do corpo técnico. Isso facilita que o poder econômico e político acabem atuando nessa área”. Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Mesmo após as informações sobre a recente investigação da Polícia Federal, houve quem defendesse de que de fato as licenças seriam muito rígidas, que atrapalhariam o crescimento das cidades. Quais são as exigências reais para conseguir uma licença sem irregularidades?
Paulo Brack – Eu acho que a grande mídia montou uma versão sobre o fato, dizendo que a questão seria meramente a demora nas licenças. A gente reconhece que às vezes na emissão de licenças há dificuldades, já que faltam funcionários. Deveria ter tido uma reestruturação interna com concursos e salários dignos para os funcionários, e é verdade que a carreira atualmente não é valorizada. Nós temos o problema da fragilização do corpo técnico. Isso facilita que o poder econômico e político acabem atuando nessa área. Havia todas as condições, um cardápio estabelecido para redundar nisso.
Mas me parece que a responsabilização dos corruptores não apareceu ainda, acreditamos que a Polícia Federal vai colocar esse processo à disposição, e que em algum momento vão aparecer os nomes dos empreendimentos. A gente sabe que a Zona Sul de Porto Alegre está sendo devastada por uma sanha imobiliária violenta. A própria questão das obras da Copa do Mundo tem a ver com isso, o secretário (Luiz Fernando) Záchia não está na Secretaria do Meio Ambiente por nada, pode ter sido colocado para tornar mais flexíveis os empreendimentos da Copa do Mundo. Criou-se um clima de exceção. Mesmo que a nossa legislação ambiental seja boa em muitos aspectos, quando se define como prioridade as obras da Copa e abrir grandes vias, praticamente se joga para escanteio a nossa legislação ambiental.
“A gente sabe que a Zona Sul de Porto Alegre está sendo devastada por uma sanha imobiliária violenta, e as obras da Copa do Mundo têm a ver com isso”. Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – A crise política gerada pelas suspeitas de fraude, tanto na esfera municipal como estadual, pode abrir espaço para ambientalistas nos governos?
Paulo Brack – Esta é uma incógnita. Primeiro a gente fica muito apreensivo, as entidades em geral, que o governador tenha levantado a possibilidade de manter o PCdoB na pasta. Ele não descartou manter na SEMA o PCdoB, e o próprio partido deve encaminhar nomes para a Secretaria, o que nos parece absurdo. Já se passaram três secretários e foi muito ruim a gestão, de certa maneira houve aparelhamento da Secretaria, em vários setores, por pessoas estranhas à área ambiental, e que utilizaram o espaço para fins partidários.
No primeiro ano, houve, de parte dos funcionários da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, uma inconformidade até em relação ao Código Florestal. Não é por nada que o Aldo Rebelo, que propôs o Código Florestal, é do mesmo partido. No primeiro ano do governo, quando a discussão sobre o assunto era intensa, os técnicos da Secretaria queriam expor as suas opiniões, e naquela época receberam uma ordem de não expor o que pensavam.
Pareceu-nos um sinal preocupante, já que a pasta que tinha uma história a favor da democracia usava da mordaça com os seus técnicos. E não sabíamos que poderia haver envolvimento em irregularidades com campanhas eleitorais, com o Instituto Biosenso, toda a operação que a Polícia Federal está tentando desbaratar.
“Pareceu-nos um sinal preocupante que a pasta que tinha uma história a favor da democracia usava da mordaça com os seus técnicos”. Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Que protagonismo pode ter o Francisco Milanez, da Agapan, dentro do governo do estado?
Paulo Brack – Primeiro se havia cogitado que ele ocuparia o cargo da presidência da Fepam, e eu até havia demonstrado pessoalmente certa simpatia, mas com apreensão, porque a estrutura foi esfacelada durante os anos. Mas esse outro cargo, que seria uma pasta ou um programa de sustentabilidade, talvez não tenha muito êxito, porque o que é estratégico e essencial hoje é, sem dúvidas, reestruturar a Secretaria. Acho que é mais importante do que tudo, não adianta criar outro setor enquanto não arrumar a situação da Secretaria. E daqui a pouco, mesmo que ele faça um trabalho bom, ocorre a troca de governo e o que fez pode se perder.
Por outro lado, vemos uma contradição em falar de sustentabilidade se o modelo de mega-empreendimentos de grande impacto ambiental permanece. É o caso da silvicultura, do carvão, das hidrelétricas. Seria ingenuidade da nossa parte acreditar que, nesta altura do campeonato, esses empreendimentos podem ser revistos. A gente não sabe muito bem o papel que o Milanez vai ter, mas é um papel individual. A própria Agapan disse que é uma decisão individual dele, e legítima, claro, mas não estaria representando as entidades ambientalistas.
Nós temos uma visão mais crítica em relação à política do governo do estado, que consideramos atrasada, por não ter incorporado a agroecologia e energias alternativas, por exemplo. Pouco tempo atrás, surgiu o troca-troca de sementes transgênicas, que a própria Secretaria de Agricultura votou a favor. Enfim, temos várias críticas ao modelo em vigor.
Sul21 – As entidades de meio ambiente não podem transformar parte deste projeto atuando dentro das instituições?
Paulo Brack – Nós temos a proposta de apontar para a agroecologia, para indústrias que sejam verdadeiramente sustentáveis, porque hoje a questão ambiental é muito de fachada, de marketing. Não acredito que no capitalismo tenha alguma alternativa sustentável, porque parte da acumulação irrestrita. E mesmo que houvesse soluções como na Bolívia, onde há limite a terra, imposto sobre grandes fortunas, hoje está difícil apontar para estes termos porque o essencial é o limite ao capital e a descentralização geral. Hoje há uma centralização do capital, e por trás governos que caem na mesma postura e nos mesmos investimentos. Essa lógica parece levar o planeta a uma crise ecológica realmente séria.
“Hoje há uma centralização do capital, e por trás governos que caem na mesma postura e nos mesmos investimentos. Essa lógica parece levar o planeta a uma crise ecológica realmente séria”. Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Sobre as licenças já emitidas de forma irregular, que danos ambientais já podem ser constatados?
Paulo Brack – O litoral é uma das regiões mais ricas em biodiversidade do estado, e entre Osório, Tramandaí e Capão da Canoa, sobrou muito pouco para se preservar. Em Xangri-lá, há mais de trinta loteamentos que desfiguram a paisagem, alteram o relevo, acabam com a fauna e a flora. Mesmo na parte em que sobrou alguma coisa, de Arroio do Sal até Torres, há dezenas de empreendimentos esperando por uma licença.
Se a gente simplesmente jogar pela agilização das licenças, como a grande imprensa está dizendo, que o processo é demorado demais, nós vamos perder de forma irreversível condições de vida em relação à água, por exemplo, porque a contaminação da água subterrânea no litoral é imensa. Essas empresas teriam que pagar as multas e, quem sabe, muitos dos gestores deverão responder criminalmente. Há ramificações profundas entre o setor privado e o setor público, e o técnico não pode mais sofrer pressão. Trata-se de assédio moral, inclusive.
A questão central é combater a ingerência política e econômica sobre as licenças ambientais. Não acontece só aqui, essa é a ponta do iceberg. Há casos assim em todo o Brasil. Como entidades ambientais, precisamos promover discussões sobre o tema, para não parecer que este episódio é pontual, temporal. Porque não se trata de um caso isolado. A partir do momento em que a grande imprensa não dá mais a mesma repercussão para o assunto, surge o “grupo do abafa”, e as grandes empresas que financiam esses órgãos vão fazer de tudo para que não sejam citadas no caso.
“(O carvão mineral) ser apontado como solução é uma das piores possibilidades, porque há o problema da mineração, da destruição dos rios e do relevo”.Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – No Rio Grande do Sul, outra vez se discute sobre o uso do carvão mineral como alternativa de energia. Há até mesmo uma comissão em defesa do carvão na Assembleia Legislativa. Trata-se de um retrocesso ou é uma formar de utilizar os recursos existentes no território gaúcho?
Paulo Brack – O carvão tem uma série de problemas que são praticamente insolúveis. Ele é muito caro, e até foi utilizado recentemente quando os reservatórios das hidrelétricas estavam baixos, mas porque o governo não incorporou alternativas. Porém, ser apontado como solução é uma das piores possibilidades, porque há o problema da mineração, da destruição dos rios e do relevo. É preciso fechar as áreas de mineração a céu aberto. As térmicas a carvão são caras em função da aquisição dos filtros, sem falar que há metais pesados que afetam o meio ambiente.
Não se conhece ainda a possibilidade de fazer uma mineração sustentável, sobre o que fazer com os gases do efeito estufa, com as cinzas geradas pelo carvão. E o carvão gaúcho é um dos mais poluentes, essas cinzas iriam para um sistema que já está sendo agredido. O carvão só é utilizado porque há um subsídio muito grande, e energias como a eólica e solar podem ser alternativas bem mais interessantes, e até de menor custo, do que a do carvão mineral.