A Coalizão pelo Pampa publicizou nesta quinta-feira, 21/3/2024 a nota transcrita abaixo a respeito do Projeto de Lei que tramita na Câmara dos Deputados de autoria inicial do Deputado Federal pelo Rio Grande do Sul Alceu Moreira. Durante a tramitação, o texto foi emendado e alterado substancialmente seus objetivos iniciais como destaca a notícia publicada em O Eco – Câmara derruba proteção a campos naturais e expõe 48 mi de hectares a desmate .

A Coalizão pelo Pampa vem a público manifestar extrema preocupação com a aprovação do PL 364/2019 na CCJ da Câmara dos Deputados, que coloca todos os campos nativos do Pampa, Pantanal, Cerrado, campos amazônicos, e campos de altitude do bioma Mata Atlântica na condição de desproteção ambiental das áreas rurais consolidadas.
O conceito de áreas rurais consolidadas foi criado na Lei de Proteção à Vegetação Nativa (LPVN – Lei Federal 12.651/2012) para tipificar aquelas áreas com ocupação antrópica anterior a 2008, o que inclui áreas que foram convertidas para outro uso, por exemplo para a agricultura, a silvicultura, e as pastagens cultivadas. Tal conceito não cabe aos remanescentes de vegetação nativa, que são as florestas, campos nativos e outras formações vegetais nativas do Brasil.
Importante ressaltar que, embora os campos nativos do Brasil realmente sejam usados secularmente com a atividade pecuária, esta atividade não suprime a vegetação nativa, ou seja, os campos nativos persistem e são compatíveis com o uso pecuário da área, sendo inclusive reconhecida como atividade sustentável e que contribui com a biodiversidade dessas áreas. Infelizmente, esse potencial do manejo sustentável é pouco explorado economicamente pelo país.
Os campos nativos possuem biodiversidade semelhante às florestas. Relegá-los ao mesmo patamar de uma lavoura de monocultura não tem qualquer base técnico-científica. Ao contrário, deveriam ser consideradas da mesma maneira como as florestas nativas. Recente estudo1 contabilizou que somente no Pampa, cujas paisagens naturais são dominadas pelos campos nativos, existem mais de 12.500 espécies de diferentes organismos vivendo no bioma. Em apenas 1 metro quadrado de campo nativo sob uso pastoril podem ser encontradas mais de 50 espécies de plantas campestres, que alimentam o gado2, sequestram e fixam carbono no solo, além de fornecer habitat para polinizadores, proteger nascentes e recarregar aquíferos, e outros serviços ecossistêmicos mais, inclusive a produção de carne e de outros produtos, bem como sua importância para o turismo ecológico e rural.
Ainda, não podemos esquecer das identidades socioculturais intrinsecamente vinculadas aos campos – como a Pecuária Familiar Tradicional do Pampa, que tem com os campos uma conexão que é de outra natureza, é simbiótica: se você não tem o campo nativo, você não tem o pecuarista familiar. O respeito à sua integridade ambiental é, por isso, um respeito à própria identidade; um movimento de autopreservação, a preservação pelo uso. Não se trata de conservar apenas um recurso material, passível eventualmente de ser substituído por outro, mas de um recurso simbólico e social que se refere à própria existência. Trecho Laudo Pericial Antropológico nº 938/2020/Sppea.
Os campos e savanas correspondem a 27% da área original do Brasil3 (Fig. 1), e grandes extensões desses ambientes serão diretamente impactados em todos os biomas brasileiros caso esse PL seja aprovado. As metas de conservação da biodiversidade, redução das emissões de gás carbônico e mitigação das mudanças climáticas, estarão seriamente comprometidas com este golpe mortal à Lei de Proteção à Vegetação Nativa. O Brasil estará colocando em cheque os compromissos internacionais nas agendas de clima e biodiversidade que assumiu cumprir até 2030. A crise de água, uma realidade em vários biomas, tende a aumentar com as mudanças climáticas, e a perda dos campos agrava os problemas e conflitos já existentes, haja vista que são zonas de recarga e estão sendo cada vez mais substituídos por solo descoberto.

O próprio conceito novo trazido pelo substitutivo do relator no PL 364/2019 é contraditório pois estabelece que “é considerada ocupação antrópica a atividade agrossilvipastoril preexistente a 22 de julho de 2008 ainda que não tenha implicado a conversão da vegetação nativa, caracterizando-se tais locais, para todos os efeitos desta Lei, como área rural consolidada.” Ou seja, o próprio PL reconhece que remanescentes de vegetação nativa campestre serão declarados como área rural consolidada! Não há justificativa razoável para que a vegetação nativa campestre não seja igualmente protegida pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa. Estas contradições, aliadas a conflitos com outros pontos da Lei 12.651/2012 (LPVN), da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006) e descumprimento do artigo 225 da CF 1988 levarão a judicialização do tema, e mais insegurança jurídica ao ambiente rural.
Dessa forma, vimos pedir mobilização para que o Senado, com apoio do Governo Federal, barrem este danoso PL 364/2019, que pode trazer efeitos desastrosos e irreversíveis à biodiversidade e à sociedade brasileira caso aprovado.
E por fim, repetimos a pergunta, a quem interessa que os campos nativos sejam apagados do mapa e riscados da legislação ambiental brasileira?4
Porto Alegre/RS, 21 de março de 2024
Coalizão pelo Pampa
- Associação dos Funcionários da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul – AFFZB
- Associação dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente e do Plano
Especial de Cargos do IBAMA-PECMA no Estado do Rio Grande do Sul – ASIBAMA-RS
- Associação dos Servidores da FEPAM – ASFEPAM
- Associação dos Servidores da Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura do
Estado do RS – ASSEMA
- Associação Amigos do Meio Ambiente de Guaíba – AMA-Guaíba
- Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – Agapan
- Associação para Grandeza e União de Palmas – AGrUPa
- Centro de Estudos Ambientais – CEA
- Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa
- Ecos do Pampa-UERGS
- Grupo de Estudos Frutifica-Ação/UERGS
- Grupo Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade TEMAS/UFRGS
- IGRÉ-Associação Sócio-Ambientalista
- Instituto Curicaca
- Instituto de Conservação Eco dos Campos
- Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – INGÁ
- Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul – NEJ-RS
- Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas -NEPRADE/UFSM
- Rede Campos Sulinos
- Rede Sul de Restauração Ecológica
- Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do Rio Grande do Sul – SEMAPI RS
- Sindicato dos Servidores de Nível Superior do Poder Executivo do Rio Grande do Sul-SINTERGS
- UPP Camaquã – União pela Preservação do Rio Camaquã
Notas:
1 Andrade et al. 2023. 12,500+ and counting: biodiversity of the Brazilian Pampa. Frontiers of Biogeography. https://doi.org/10.21425/F5FBG59288
2 Coradin, L et. al. (org.) 2011. Espécies nativas da flora brasileira de valor econômico atual ou potencial: plantas para o futuro – Região Sul. Brasília: MMA. https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/biodiversidade-e-ecossistemas/fauna-e-flora/Regiao_Sul.pdf
3 Overbeck et al. 2022. Placing Brazil’s grasslands and savannas on the map of science and conservation. Perspectives in Plant Ecology, Evolution and Systematics, 125687. https://doi.org/10.1016/j.ppees.2022.125687
4 https://oeco.org.br/analises/a-quem-interessa-que-os-campos-nativos-sejam-riscados-do-mapa-e-apagados-da-l egislacao-ambiental-brasileira/