Manifesto do Instituto dos Arquitetos do Brasil / RS sobre a reconstrução do Rio Grande do Sul

O Instituto dos Arquitetos do Brasil / Seção do RIo Grande do Sul divulgou nesta sexta-feira, 24.5.2024, um Manifesto afirmando a necessidade de atenção ao planejamento, arquitetura e urbanismo para a reconstrução das cidades. O documento afirma que é compreensível “a necessidade de respostas rápidas, afinal são muitos os atingidos pela tragédia”. Mas destaca que “soluções mágicas de curto prazo podem ter efeitos negativos a médio e longo prazo”.

A seguir, a íntegra

Manifesto IAB-RS para a Reconstrução do RS

Considerando a enorme tragédia causada pelos efeitos da crise climática e pelo descaso do poder público com o planejamento urbano e regional sustentável na promoção de cidades justas, igualitárias e ecologicamente  equilibradas, a Comissão Cidades/IAB RS, por meio deste, manifesta a necessidade de atenção às questões referentes às diferentes escalas de planejamento, arquitetura e urbanismo para reconstrução das cidades do Rio Grande do Sul, aqui agrupadas em dois grandes grupos:(A) Planejamento Urbano e Regional e (B) Moradia Digna.

Para todas as escalas destacamos a importância dos seguintes aspectos:

  • o fortalecimento das instituições públicas no comando do interesse público, uma vez que o estado de calamidade que vivemos é fruto do enfraquecimento das instâncias de planejamento e de prestação de serviços urbanos, com enfoque em  respostas oriundas do setor privado;
  • o investimento público na contratação de consultorias técnicas que inclua nos produtos a capacitação do funcionalismo público. Destaca-se a importância de contratação de técnicos locais e universidades, uma vez que consultorias internacionais não tem dado as respostas necessárias;
  • participação social durante os processos de elaboração e implementação de propostas;
  • a reconstrução de cidades e moradia a partir de outra lógica, de adaptação e mitigação dos efeitos da crise climática, com respeito às legislações urbanas e ambientais.
  • Incorporação do princípio  de justiça climática, com atenção às questões de gênero, raça e classe.
  • PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL

O Planejamento atende às questões de médio e longo prazo e perpassa as escalas do planejamento regional, planejamento urbano e planejamento de bairros, todas interligadas.

PLANEJAMENTO REGIONAL

Visão de planejamento regional integrada entre municípios, a partir das seguintes questões:

  1. Resgate do poder público na coordenação dos processos de reconstrução, com a reestruturação de instâncias de planejamento regional, como a METROPLAN, no Governo do Estado do RS.
  2. Recuperação de estudos e planos já existentes, realizados pela Metroplan, FEEE e outras fundações e órgãos públicos do RS sobre controle das enchentes e temas correlatos.
  3. Criação de modelos sustentáveis de uso e ocupação da terra, bem como de monitoramento e avaliação dos avanços de atividades econômicas que utilizam extensivamente o território gaúcho, como o agronegócio, a silvicultura e a pecuária, além da expansão das manchas urbanas, em desacordo com a legislação específica de parcelamento do solo (Lei Federal 6766/1979) e seus conflitos com áreas ambientalmente vulneráveis.
  4. Financiamento de mapeamento geomorfológico de toda a Região Metropolitana de Porto Alegre com os cenários de risco.

PLANEJAMENTO URBANO

A necessidade de inserção dos 398 municípios atingidos (Decreto Nº 57626/2024) no Cadastro Nacional de Municípios com Áreas Suscetíveis à Ocorrência de Deslizamentos de Grande Impacto, Inundações Bruscas ou Processos Geológicos ou Hidrológicos Correlatos.

Nesse sentido, de acordo com o Estatuto da Cidade, os municípios identificados como em situação de risco, passam a ter obrigatoriedade de elaboração de Plano Diretor, que devem considerar:

  1. Levantamento de áreas de preservação permanentes (APPs) atingidas pelas cheias com indicação de ocupação solo, objetivando a recuperação de tais áreas para seus fins de preservação ambiental, hidrológica e geológica, conforme Código Florestal Brasileiro, Lei nº 12.651/12;
  2. O restabelecimento da paisagem ecológica em áreas rurais, assim como o estabelecimento de medidas que promovam a produção primária associada à conservação ambiental;
  3. A promoção, renovação ou manutenção de sistemas contra enchentes, com projetos baseados em soluções de infraestrutura cinza (soluções de engenharias tradicionais) em diálogo com a de infraestrutura verde (soluções baseadas na natureza).
  4. A delimitação das zonas de risco e das áreas frágeis à ocupação pelas cotas de inundação (quando não houver proteção) ou por risco de deslizamento de terra nos morros e encostas;
  5. A delimitação das áreas indicadas para Habitação de Interesse Social em locais de boa oferta de trabalho, transporte e infraestrutura urbana, respeitando a territorialidade das comunidades atingidas;
  6. O compromisso com medidas e diretrizes de preservação, manutenção e criação de espaços verdes no perímetro urbano de modo a garantir espaços de maior permeabilidade das águas e diminuição das temperaturas. Importante notar que essas soluções não podem acontecer de forma isolada, pois é o conjunto de soluções operando na forma de um sistema de infraestrutura verde que propicia os efeitos positivos;
  7. Reconhecer o racismo ambiental e a necessidade de propostas alinhadas à justiça climática, uma vez que a alta incidência de catástrofes e efeitos climáticos incidem de modo mais intenso em populações pobres, negras, indígenas e comunidades tradicionais, como pescadores artesanais, por exemplo. A partir da perspectiva de gênero, raça e classe propor medidas mitigatórias dos impactos das mudanças climáticas na população vulnerabilizada.

PLANEJAMENTO DE BAIRRO

  1. Essa escala de planejamento propicia abordagem multisetorial, a partir de diferentes temas como: habitação, saneamento, drenagem urbana, gestão de resíduos, meio ambiente, economia, segurança, saúde e educação, esporte, cultura e lazer, gênero, raça e juventude etc.;
  2. A escala dos planos de bairro é potencializadora de mobilização comunitária por trabalhar o território a partir da vida cotidiana da população e territorialidade;
  3. Os planos podem contar com o desenho urbano de espaços públicos e de soluções de infraestrutura verde previstas na escala municipal. Importante notar que os planos de bairro operam de modo interligado ao planejamento municipal;
  4. Volta-se, também, ao desenho urbano para novas áreas a serem construídas ou mesmo da ocupação de áreas não mais possíveis para moradia, definidas na escala de planejamento urbano e também na qualificação urbana de tecidos consolidados;
  5. Importante pensar também a dimensão relacional do planejamento urbano, de modo a evitar ou mitigar potencias processos de gentrificação em áreas que passarão pro reformulação de espaços públicos.
  • MORADIA DIGNA

Os aspectos relacionados à Moradia Digna se debruçam sobre questões de curto, médio e longo prazo. Seja qual for a solução para a moradia, deve atender:

  • aos padrões de arquitetura sustentável (captação de energias renováveis, aproveitamento de águas pluviais e reuso de águas cinzas, soluções para conforto térmico e redução do uso de energia, coberturas verdes etc);
  • as características sociais e culturais da população envolvida nos projetos, a partir de consultas e canais de diálogo participativo;
  • às condições de territorialidade e segurança da população.

ADAPTAÇÃO DE IMÓVEIS VAZIOS

  1. Utilização de imóveis públicos vazios são ações necessárias e que devem vir acompanhadas de políticas públicas de habitação e de medidas de acompanhamento de assistência social e de psicologia para a melhor condução das famílias que passam pelo trauma da perda de seus lares;
  2. Destacamos a importância da requalificação de edifícios ociosos como potencial para moradia, considerando a premissa da função social da propriedade estabelecida pelo Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/2001). Estes devem ser escolhidos conforme estrutura e localização adequadas para o acolhimento das famílias que tenham interesse em utilizar esse tipo de habitação;
  3. Em havendo imóveis vazios privados, a compra assistida  é uma alternativa que também se associa à função social da propriedade. Para Porto Alegre, segundo dados do IBGE (2022), há o contingente de 101 mil imóveis vazios. De tal forma, se poderá prescindir a construção de novas unidades habitacionais para resolver o problema do déficit habitacional;
  4. Há também o estoque de imóveis em situação de dívida pública, como o IPTU, por exemplo.
  5. Essa medida também se faz importante frente à ideia de cidades provisórias, as quais necessitam de novas construções, de caráter temporário, e colocam as famílias em convivência coletiva fora de seus territórios originais, implicando novas configurações sociais e interferência de maior impacto tanto para a vida das pessoas quanto para dinâmica urbana e social do território onde essas cidades forem alocadas.

MELHORIA HABITACIONAL VIA ATHIS

  1. A Lei de Assistência Técnica (Lei nº 11.888/2008) prevê a prestação de serviços de profissional arquiteto e urbanista para famílias de até 3 salários mínimos;
  2. Projetos para melhorias habitacionais podem ser elaborados a partir da regulamentação da lei em âmbito municipal, considerando o acompanhamento dos profissionais em todas as etapas de projeto, desde levantamentos e laudos até a elaboração de projeto arquitetônico para reformas. Os projetos em ATHIS podem ser acompanhados de capacitação de mão de obra para execução e envolvimento comunitário;
  3. A melhoria habitacional é uma parte importante do processo. Equipes multidisciplinares que possam trabalhar em conjunto com os moradores, entendendo as necessidades habitacionais de cada família configura uma política pública que estimula a permanência das famílias nas suas habitações;
  4. A importância de um déficit qualitativo habitacional opera na condução de políticas públicas direcionadas para o problema.

PROVISÃO DE NOVAS MORADIAS

  1. A provisão de novas moradias deve atender e garantir os princípios de moradia digna (garantia de permanência, condições de habitabilidade, de acesso ao trabalho e aos serviços urbanos, boa provisão de infraestrutura urbana e segurança ambiental);
  2. Devem atender às questões socioculturais e de geração de renda. Casas padrão em material pré-moldado dificultam a possibilidade de adaptação;
  3. Soluções versáteis, nas quais já esteja previsto múltiplas possibilidades de extensão e adaptação dos espaços.

Destaca-se, por fim, que o IAB-RS compreende a necessidade de respostas rápidas, afinal são muitos os atingidos pela tragédia. No entanto, destacamos que soluções mágicas de curto prazo podem ter efeitos negativos a médio e longo prazo. Os prejuízos sociais e as violações dos direitos humanos podem se agravar ainda mais. É imperativo que o momento de crise represente uma mudança de rumo no planejamento urbano e regional de Porto Alegre, da Região Metropolitana e do Estado do RS. Não haverá soluções sustentáveis se não forem restabelicidas e fortalecidas as estruturas de planejamento urbano e regional.

O enfoque exclusivo no caráter produtivo das cidades agrava as causas e as consequências de tragédias como essa. A questão ambiental e social precisa prevalecer. A tragédia aponta como a prevalência dos interesses de poucos acarreta na perda de direitos de muitos!

IAB – RS / Diretoria Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB 

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Jornalista, Porto Alegre, RS Brasil.

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