Artigo do editor: O Plano Diretor das forças de mercado

O Plano Diretor das forças de mercadoFoto: Vitor Rosa / Secom

Jornalista especializado em direito ambiental e urbanístico analisa trechos preocupantes do texto em que a prefeitura deixa claro a importância das “forças de mercado” e “interesses privados” no planejamento urbano

É de se observar alguns pontos dos textos distribuídos nesta terça-feira (8/7) à população através do site. Registre-se que a prefeitura desmembrou o Plano Diretor em um texto que se pode considerar “de princípios e de estruturação da própria prefeitura” e outro, que trata justamente sobre o parcelamento, o uso e a ocupação do solo. Foi divulgada também a data para a audiência pública no Auditório Araújo Viana: 9 de agosto. Prevê-se uma mobilização maciça do segmento da construção civil para o evento. E da sociedade.

No entanto, tratam-se de textos complexos que exigem estudos e discussão pública de seus dispositivos.

O texto apresentado pela prefeitura, “Plano Diretor Urbano Sustentável”, parece um conjunto de regramentos que caberia mais em uma lei orgânica ou um conjunto de normas inaplicáveis. Aliás, o que quer dizer a expressão ‘sustentável’ colocada no nome da lei? Vejamos o texto de alguns artigos:

Concertação entre público e privado

art. 3º, em pelo menos um dos “princípios fundamentais” do Plano Diretor, confunde interesse público e interesse privado. No senso comum, o que é interesse público é o interesse confessável, dito alto e bom som, reconhecido, o que também se confunde com o que é de interesse difuso, de todos ou da maioria da população e da cidadania. Mas o texto traz o trecho: “concertação entre interesses públicos e privados na elaboração e implementação de planos urbanísticos” (item III) confunde o que seria esta tal concertação. Não se trata de harmonizar duas coisas diferentes. Os interesses da cidadania ou parte dela não podem ser privados. O texto está explicitamente entendendo serem dois conceitos distintos, o que permite concluir que há interesses inconfessáveis que vão influenciar o decidir e o agir da prefeitura.

A confusão talvez – ou certamente – seja exatamente esta visão da cidade e da cidadania que os atuais administradores públicos têm, é assim que enxergam a dinâmica social da cidade. Não veem como ‘públicos’ os interesses ‘privados’. Poder-se-ia entender que ‘interesses privados’ são interesses ‘escondidos’ e de apenas alguns grupos de pessoas. Quando algum interesse deve ser manejado na esfera pública, ele deve ser público. Haveria um problema sério aí na redação ou na proposta.

Resiliência versus participação comunitária

Já o item VII deste mesmo art. 3  refere-se a mais um “‘princípio fundamental’: a “resiliência urbana e climática, de modo a preparar a cidade para enfrentar os impactos das mudanças climáticas e eventos adversos, promovendo a adaptação e a mitigação de riscos”. Mas não especifica o que se entende por  resiliência urbana e climática. A dúvida acontece porque para haver resiliência é necessária participação comunitária.

O paradoxo é que todos os meios que permitiriam a participação efetiva da comunidade têm sido combatidos pela atual administração do Município. O Conselho do Plano Diretor se reúne a portas fechadas, impedindo a assistência da cidadania no próprio local das reuniões que, embora públicas (pela internet), contam com horário certo para iniciar (sempre iniciando atrasado) e para acabar (horário sempre respeitado) – além de ter sido permitido uma cadeira para a própria construção civil, em um evidente desvio de finalidade. E a decisão da Justiça que determina novas eleições para as entidades.

O Conselho Municipal do Meio Ambiente (CMMA) não se reúne há meses limitando a contribuição de entidades da cidadania à política ambiental, essencial para uma governança democrática e comunitária, o que impede que se entenda exatamente como seria aplicado este “princípio fundamental” pela atual administração. Isto citando apenas dois dos inúmeros colegiados existentes.

Forças de mercado

O item IX introduz o conceito de “forças de mercado” na Lei do Plano Diretor e o trata como um dos ‘princípios fundamentais’ do novo Plano Diretor: “O Plano Diretor Urbano Sustentável de Porto Alegre será regido pelos seguintes princípios fundamentais, que orientarão o crescimento sustentável da cidade e a interpretação de suas normas: 

IX – dinamismo econômico, de modo a reconhecer e incentivar o papel das forças de mercado como fator propulsor do desenvolvimento urbano, promovendo investimentos privados que resultem em benefícios coletivos para a cidade;”

Mantido este dispositivo ‘fundamental’ no texto definitivo, as tais “forças de mercado” vão funcionar como agentes de um desenvolvimento urbano. Ora, “forças de mercado” são conhecidas como as “mãos invisíveis do mercado”.

Aparentemente, há a  entrega aos tais ‘interesses privados’ citados em outro item deste artigo (ver acima) a administração do urbano. Isto explicaria porque em atos recentes, retirou-se a função de planejamento da cidade de uma secretaria altamente especializada, a de planejamento, e a transferiu para outra, onde, por acaso, foram sendo centralizadas atribuições de aplicação do Plano Diretor e do licenciamento ambiental ou o reconhecimento de que não faz falta… certamente aos tais ‘interesses privados’ e às ‘forças de mercado’.

Liberdade de iniciativa

art. 4 inova ao citar o conceito de “liberdade de iniciativa”.  Mais um conceito de aplicação conveniente. Vivemos em um estado de direito, que poderia ser definido como “um dos pilares fundamentais das sociedades democráticas contemporâneas, representando um sistema no qual o Poder do Estado é limitado pela lei, e não exercido de forma arbitrária. Nesse arranjo, governantes e governados estão submetidos ao império da lei, garantindo-se a proteção dos interesses individuais e a previsibilidade das ações estatais”. Do que se trata “liberdade de iniciativa” em relação à “ordenação do parcelamento, uso e ocupação do solo do Município, em conformidade com a função social da propriedade e a liberdade de iniciativa”.  Será que o texto gostaria de deixar à liberdade de iniciativa de cada um decidir como parcelar e ocupar o solo de Porto Alegre?

Projetos arquitetônicos icônicos

O item XXII deste mesmo art. 4, fala em “incentivo à inovação e a projetos icônicos, com a promoção de ajustes normativos que estimulem investimentos em projetos arquitetônicos inovadores e valorizem a paisagem urbana”.  Aqui, mais uma vez, pode-se levantar questionamentos sobre o que significa “projetos arquitetônicos inovadores” que “valorizem a paisagem urbana”.   Não fosse a comunidade socorrer-se da Justiça Federal, teríamos um edifício de 41 andares em plena rua Duque de Caxias, fazendo sombra a inúmeros prédios históricos da cidade. E com benção do setor  responsável pelo licenciamento dando a entender que seria possível a aprovação via Programa de Reabilitação do Centro Histórico.

Também está sendo licenciado com todos os elogios da administração pública um conjunto de prédios na Praia de Belas que irão interferir no sombreamento e qualidade de vida da região. Aplicar conceitos ‘vazios’ ou abertos a uma interpretação equivocada pode justamente trazer efeitos contrários ao desejado para a cidade. Nada contra projetos arquitetônicos inovadores que valorizem a paisagem urbana, mas a aplicação deste texto pela atual administração seria um perigo para a cidade.

Unidades de conservação

O art. 5º traz outra pérola ao prever que as unidades de conservação da natureza devem ter “níveis de serviço compatíveis com as demandas da população”, abrindo a possibilidade de simplesmente não haver no território de Porto Alegre UCs de “proteção integral”, onde simplesmente há áreas que devem ser mantidas sem presença humana conforme seus respectivos planos de manejo. Aliás, todas as quatro unidades em Porto Alegre de proteção integral têm plano de manejo, mas apenas em uma há o funcionamento de um conselho consultivo formado pela comunidade do entorno e outras entidades.

Ciclovias

No art. 10, é dito que, para reduzir o tempo de deslocamento das pessoas nos trajetos diários, haverá mais as ciclovias no extremo sul do município, “como infraestrutura de transporte complementar”.

Pelo texto entregue à população pela Prefeitura, não haveria um transporte cicloviário autônomo, o que poderia perfeitamente existir em determinadas regiões da cidade.   Pode-se entender a citação ao extremo sul da cidade para expandir as ciclovias também como tentativa de deixar o transporte coletivo de lado nesta região, em que há um grande gasto de quilometragem e combustível nas poucas e cada vez menos linhas de transporte coletivo. Aliás, depois das inundações de 2024, a zona sul de Porto Alegre viu-se sem algumas linhas de transporte coletivo que existiam antes. Ciclovias deveriam ser valorizadas em todo o município não necessariamente como estrutura complementar.

Vazios urbanos

No art. 11, que trata da questão habitacional, há a proposta óbvia de “incentivar a ocupação de vazios urbanos e a reutilização de imóveis ociosos em áreas estratégicas”. Também há a previsão de aproveitamento de imóveis ociosos em áreas centrais (inc. VI do art. 11). Sabe-se que o Centro Histórico tem um enorme número de unidades de moradia vazias e não se divulga algum programa municipal que permita usar estes espaços para diminuir o número de famílias sem moradia. Aliás, a política habitacional do município está a cargo de um departamento.

Sistema ecológico

Por outro lado, há dispositivos positivos para um Plano Diretor de Porto Alegre como o art. 12, que trata da adaptação da cidade aos efeitos das mudanças climáticas e a redução das emissões de gases de efeito estufa, e outros dispositivos, citados no art. 18, sobre o ‘sistema ecológico’ outra expressão aplicada de forma interessante. A dúvida é sobre quais serão efetivamente aplicados pela administração, já que alguns entram em conflito outros. As reuniões com a participação da cidadania, cujos relatórios foram disponibilizados na página do novo Plano Diretor, foram todas realizadas antes das inundações, como mostra o relatório de 2025, também ali publicizado. Será que a comunidade não teria como colaborar com novas diretrizes e planos para uma cidade machucada e com as pessoas traumatizadas?  Ou tudo isto deverá acontecer no sábado, 9 de agosto, na audiência pública já convocada?

Alta complexidade x pouco tempo

O projeto da lei principal contém declaração de princípios e tem 217 artigos e estrutura uma secretaria que cuida do meio ambiente para responder às novas demandas de gestão do urbano.  Ao contrário da antiga Secretaria do Planejamento, onde os arquitetos e urbanistas tinham enorme participação, a atual secretaria do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) parece ter interlocução total com a construção civil, apesar do respeitável corpo técnico. Sim, todos precisamos da indústria da construção civil e dos empregos que traz, mas interesses deste segmento não deveriam  ser preponderantes em políticas municipais. O texto da minuta da lei que trata do uso do solo tem 117 artigos.

A discussão pública sobre os textos estão recém iniciando. Espera-se que haja tempo hábil para a sociedade se inteirar dos seus conteúdos e realizar contribuições construtivas a este documento fundamental para a vida em sociedade em uma cidade.


João Batista Santafé Aguiar é Jornalista especializado em Direito Ambiental e Urbanístico, é editor do AgirAzul.com e membro do Conselho da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental (RBJA) e ex-presidente do Núcleo de Ecojornalistas do RS (NEJ-RS).

Fonte: Matinal Jornalismo

Editor

Jornalista, Porto Alegre, RS Brasil.

Next Post

Conselheiros do Plano Diretor de Porto Alegre pedem paralisação dos trabalhos / decisão do TJ libera / Tribunal de Contas

qui jul 10 , 2025
Três membros titulares do CMDUA – Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre assinaram a Moção sobre a ilegalidade da deliberação da Revisão do Plano Diretor de Porto Alegre e a entregaram na noite desta quarta-feira (9/7/2025), uns minutos antes de iniciar a reunião do CMDUA. Os três são os Conselheiros Felisberto Seabra Luisi, da Região de Planejamento 1 (centro da cidade), Fernando Campos Costa pela ONG Amigas da Terra, e Eber Pires Marzulo, pela UFRGS. Entendem que existe uma impossibilidade jurídico-administrativa de deliberação sobre o conteúdo da proposta de revisão do Plano Diretor de Porto Alegre […]

You May Like

Descubra mais sobre AgirAzul Notícias / Jornalismo Ambiental

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading